Uma homenagem póstuma a Serge Moscovici

por Celso Pereira de Sá
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Brasil

 

Serge Moscovici, um dos principais autores contemporâneos no âmbito da psicologia social, faleceu, aos 89 anos, em Paris, no último dia 16 de novembro. A tão extensa quanto original obra que ele nos deixou – que não poderá ser aqui senão muito brevemente lembrada – se deve em grande parte a suas peculiaridades pessoais, como se buscará destacar a seguir.

Serge Moscovici (1925-2014)
Serge Moscovici (1925-2014)

Para começar, é interessante lembrar que, em entrevista a Ivana Markovà, Moscovici declarou que a sua formulação inicial da teoria das representações sociais foi um produto da sua “idade da inocência”, ou seja, de quando ele começara a estruturar a sua tese de doutorado, sem conhecer ainda tudo o que autores anteriores haviam desenvolvido acerca do pensamento social, incluindo aí tanto a abordagem sociológica das representações coletivas quanto as perspectivas psicológicas da cognição social. É possível que essa disponibilidade intelectual – ou ausência de compromissos acadêmicos prévios – tenha sido decisiva para a produção da sua inovadora teoria psicossocial. De fato, em A psicanálise, sua imagem e seu público, obra que lançou as bases da teoria, Moscovici diz que a psicologia clássica definia a representação como uma instância intermediária entre a percepção e o conceito, mas que nada o impedia de pensar na representação como um processo que torna a percepção e o conceito intercambiáveis. Foi certamente a partir dessa concepção, não autorizada pelo pensamento psicológico de então, que ele formulou os processos formadores das representações sociais – ancoragem e objetivação – que, junto com o princípio mais geral da familiarização, constituem o cerne da sua teoria.

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“La psychanalyse, son image et son public” (1961), obra seminal da Teoria das Representações Sociais.

 Nesta sua iniciativa de renovação da psicologia social, tiveram papel importante as perspectivas antropológicas, sociológicas e históricas selecionadas para uma articulação com as perspectivas psicológicas. Ou seja, Moscovici inaugurou uma orientação explícita para a disciplina que pode ser sintetizada na fórmula “não se faz psicologia social apenas com a psicologia”, como os norte-americanos são acusados de fazer. Observa-se, entretanto, num sentido inverso de apropriação das contribuições disciplinares, que muitos estudiosos da sociologia, da antropologia e da história se valem atualmente do conceito moscoviciano, sem sequer saber que o estão fazendo. Ou seja, empregam o termo no sentido específico que Moscovici lhe deu – e não nas acepções genéricas anteriores – mas não reconhecem a sua autoria nem a sua disciplina de origem, a psicologia social.

Outro campo de estudos que Moscovici inaugurou, pouco tempo depois do das representações sociais, foi o da influência social minoritária, cuja rápida consolidação na chamada psicologia social mainstream parece ter se devido à sua ampla difusão no âmbito acadêmico norte-americano.  De fato, por ter, na proposição de uma Psicologia das Minorias Ativas, produzido uma contrapartida experimental aos estudos sobre a influência majoritária, iniciados por S. Asch, em 1952, Moscovici foi o único autor europeu contemporâneo incluído no Handbook of Social Psychology de 1985. Além disso, em entrevistas e conversas pessoais, Moscovici costumava tecer comentários bastante positivos sobre autores americanos, como Leon Festinger, Morton Deutsch, Stanley Schachter, e Robert Zajonc, com os quais conviveu em suas estadas nos Estados Unidos. Tais comentários não pareciam ser ditados apenas pelo apreço pessoal que teria desenvolvido em relação a eles, mas implicavam um reconhecimento da qualidade e importância das suas contribuições à psicologia social. Isto importa noticiar porque, pelo menos no contexto brasileiro da psicologia social, tem sido comum não apenas a justa crítica ao caráter individualista da psicologia social americana e à hegemonia do método experimental, endossadas por Moscovici, mas também uma rejeição da dimensão propriamente psicológica da psicologia social e dos métodos objetivos de pesquisa, com a qual ele seguramente nunca esteve de acordo.

Ao mesmo tempo em que se valeu de autores das demais ciências humanas e sociais para renovar a psicologia social, Moscovici não deixou de levar para a discussão dos temas clássicos dessas ciências uma contribuição de natureza especificamente psicossocial. Assim, ele “desrespeitou” as habituais fronteiras disciplinares em ambos os sentidos, de lá para cá e de cá para lá. Embora exortações retóricas no sentido do rompimento das barreiras disciplinares sejam muitas, têm sido poucos os autores contemporâneos que, como ele, fazem de fato isso nos conteúdos substantivos das suas obras. Ainda nessa linha, embora Moscovici conhecesse bem as análises próprias à filosofia da ciência, não lhes reconhecia autoridade ou capacidade para intervir na construção das teorias científicas. Nesse sentido, dizia a seus colaboradores que “nós não somos epistemólogos, mas sim psicólogos sociais” que estamos desenvolvendo um campo de estudo científico.

Finalmente, em livros como Essai sur l’histoire humaine de la nature e Sociedade contra natureza, Moscovici se contrapôs às perspectivas que, nas ciências humanas e sociais, propõem alguma forma de distinção, separação ou afastamento entre a sociedade e a natureza. Dizia ele que a sociologia, a antropologia cultural e a história situaram seus objetos de estudo em um dos lados dessa dicotomia: da sociedade humana, separando-a qualitativamente das sociedades animais; da cultura, como superação ou negação de tudo o que pudesse ser visto como natural no homem; da história, distinguindo-a da pré-história, quando os homens estariam ainda imersos na natureza. Moscovici contribuiu assim decisivamente para o movimento ecológico – francês, mas também internacional – ao lhe conferir uma base teórica mais consistente do que a fórmula do “retorno do homem à natureza”. Pela sua tese, tal fórmula simplesmente não fazia sentido, pois a construção da sociedade humana nunca teria implicado uma ruptura com a natureza.

 Estas são breves amostras do que Serge Moscovici deixou como legado de uma vida inteiramente dedicada ao estudo do que poderíamos chamar, para fazer justiça à abrangência da sua obra, de “assuntos humanos”.

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