A estrutura das revoluções científicas: 50 anos de polêmicas na historiografia da ciência e na historiografia da psicologia

Escrito por Thomas Kuhn, A estrutura das revoluções científicas – talvez o livro mais controverso da historiografia da ciência – completa cinquenta anos em 2012. A equipe de editores do Blog da RIPeHP agradece a gentil colaboração de Robson Nascimento da Cruz na presente reflexão sobre a referida obra de Kuhn. Desejamos a todos boa leitura!

Produto de mais de uma década de pesquisas do físico, filósofo e historiador, Thomas Samuel Kuhn, essa obra representa uma revolução na historiografia da ciência. Ainda assim, mesmo com todo o seu impacto, o livro de Kuhn não seria um clássico da história e da filosofia da ciência, como é o caso, por exemplo, de A lógica do desenvolvimento científico, do filósofo Karl Popper. Tal declaração realizada pelo professor Alberto Cupani, da UFSC, efetuada em recente evento do Grupo Scientae, da UFMG, em comemoração ao cinquentenário de A estrutura das revoluções científicas, não é, contudo, desqualificadora da teoria kuhniana da ciência. Visa, sim, enfatizar duas de suas principais qualidades: o esforço de síntese de debates presentes nas formulações de autores preocupados com o fenômeno histórico da ciência na primeira metade do século XX e o levantamento de questões ainda hoje distantes de respostas consensuais. Motivos que tornaram o livro de Kuhn o principal demarcador do “antes e depois” no cenário historiográfico da ciência no século XX. Porém, também é relevante dizer que essa propriedade marcante do livro de Kuhn não representou condição suficiente para a formação de um programa de pesquisa estritamente baseado em suas ideias. Tentativas para tanto não faltaram, mas foram desencorajadas, inclusive pelo próprio Kuhn, que sempre desqualificou os arautos do seu pensamento.

Capa da edição brasileira do livro “A estrutura das revoluções científicas” traduzido por Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira e publicado pela Editora Perspectiva.

Mesmo sem orientar um programa de pesquisa sistematizado, A estrutura das revoluções científicas conferiu inquestionável legado para as posteriores gerações de historiadores da ciência. A desconfiança no progresso cumulativo da ciência, o conhecimento científico como convenção social, a crítica ao realismo científico, o papel do ensino da ciência e sua função especial na socialização dos cientistas e seus efeitos na visão de mundo desses, entre outros fatores, atualmente, tratados como autoevidentes por quase todos os historiadores da ciência, são heranças, em maior ou menor medida, do trabalho seminal de Kuhn.

É também espólio de A estrutura as revoluções científicas a abertura para a experimentação metodológica no estudo da história da ciência. O livro de Kuhn efetua uma abordagem eclética e híbrida da história da ciência, na qual se observa a junção de disciplinas como a história, a antropologia, a linguística, a filosofia da linguagem e, de especial interesse aqui, a psicologia. Porém, esse enfoque multidisciplinar apontado por muitos como a principal qualidade do livro de Kuhn, para seus críticos, é fonte de inúmeras falhas e imprecisões, as quais nunca deixaram de ser bem assinaladas.

A psicologia, além de compor o arcabouço teórico e metodológico do livro de Kuhn, não ficou imune à sua interpretação histórica da ciência. A tentação de escrever a história da psicologia em termos paradigmáticos foi rapidamente disseminada entre os psicólogos e, nos últimos cinquenta anos, jamais deixou de ser empregada. Independente das conclusões que possam ser abstraídas do extenso debate instigado por A estrutura das revoluções científicas, é fato que os psicólogos foram, antes de tudo, consumidores deslumbrados do trabalho de Kuhn.

As consequências do apreço cego à teoria kuhniana da ciência foram no mínimo duas. A primeira e mais grave foi o uso acrítico das proposições de Kuhn. A segunda foi a perda da oportunidade de avaliar o papel desempenhado pelo conhecimento psicológico em A estrutura das revoluções científicas. Sobre essas implicações, vale recordar que os psicólogos viram no livro de Kuhn o ensejo para glorificar/mitificar seus respectivos campos de pesquisa e atuação como paradigmáticos. Interpretação impraticável para qualquer leitor minimamente atento ao texto de Kuhn e sua explícita classificação da psicologia como uma ciência pré-paradigmática. A despeito das inúmeras críticas direcionadas aos psicólogos que recorreram e ainda recorrem à interpretação kuhniana em busca de legitimação científica de seus campos de conhecimento ou supostos paradigmas psicológicos, é preciso notar que a psicologia não foi uma mera assimiladora dos pressupostos kuhnianos. Primeiro, porque essa assimilação nada teve de ingênua e, segundo, porque, como exposto, mesmo sendo definida como uma ciência pré-paradigmática, Kuhn recorre à psicologia enfaticamente para fundamentar muitos de seus argumentos centrais.

Capa da segunda edição de “Estrutura das revoluções científicas” publicada pela Editora da Universidade de Chicago na década de 1960.

O destaque dado por Kuhn ao teor psicossocial da ciência, ao afirmar que muitas de suas generalizações dizem respeito à psicologia social dos cientistas, é manifesta do início ao fim de A estrutura das revoluções científicas e manifestam o valor da psicologia nessa obra. Prova disso são os resultados de pesquisas empíricas e conceitos provindos da psicologia da percepção, da psicologia da gestalt, da psicologia cognitiva e da psicologia genética de Jean Piaget. Todos eles empregados por Kuhn com a finalidade de fundamentar a noção de que a natureza das revoluções científicas (por mais que essa noção possa ser questionada) não é uma questão apenas de análise lógica das mudanças estruturais dos sistemas científicos. A própria lógica interna da ciência deve ser explicada também com referência à psicologia individual e social dos cientistas.

Cumpre dizer que muitas são as alegações de que o trabalho de Kuhn sofreria de inúmeros problemas de ordem lógica, o que é quase inquestionável quando se observa as contradições e os problemas de coerência interna de seus argumentos. Vide, a imprecisão do conceito de paradigma e os problemas envoltos na ideia de incomensuralidade apontados por seus mais diversos críticos. Todavia, essas questões não são suficientes para desqualificar o valor heurístico do livro de Kuhn que a cada página impressiona por expor condições da vida comunitária da ciência presentes na construção do conhecimento científico. Aspecto esse que expõe outra inovação da interpretação kuhniana: definir a comunidade científica como unidade de análise da ciência.

Para nós psicólogos interessados na história da psicologia, o que surpreende nisto tudo é notar que o livro de Kuhn tenha servido mais à função de subsidiar interpretações afoitas por definir a psicologia como uma ciência paradigmática, do que como exemplo do valor dado ao conhecimento psicológico na investigação do funcionamento da ciência.

Por último, vale dizer que concordemos ou não, uma coisa é certa, com a publicação do livro de Kuhna psicologia do cientista alcançou um novo patamar na historiografia da ciência. Mas até que ponto nós psicólogos empreendemos de fato a inclusão da psicologia no complexo campo de análise da ciência, é uma pergunta em aberto há no mínimo cinquenta anos. Apenas uma coisa pode ser dita, qualquer que seja a resposta a essa questão, ela necessita antes de tudo estar desvinculada do apressado sonho paradigmático que paira sobre a psicologia desde a publicação de A estrutura das revoluções científicas.

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