por Flávio Coelho Edler
Historiador
Fundação Oswaldo Cruz (Brasil)
Quase 30 anos após o fim da ditadura militar no Brasil, no dia 10 de dezembro de 2014, a Comissão Nacional da Verdade (CNV), instituída pela Lei 12.528 de 18 de novembro de 2011, concluiu seu trabalho com a entrega à presidenta da República de volumoso relatório – mais de 4.000 páginas – dividido em três alentados volumes, onde se empenhou “em esclarecer o quadro de graves violações de direitos humanos – detenção ilegal, tortura, morte, desaparecimento forçado e ocultação de cadáver – praticadas entre 1946 e 1988”, tendo em vista o fortalecimento dos valores democráticos e a promoção da “reconciliação nacional”.
O marco cronológico seguiu as orientações da Constituição de 1988, a qual previa, em suas Disposições Constitucionais Transitórias, a apuração e o esclarecimento público das graves violações de direitos humanos, por agentes do Estado, aos opositores políticos de um regime que nasceu violando a constitucionalidade democrática erguida pela Carta de 1946. A ênfase investigativa, no entanto, prendeu-se ao período ditatorial (1964 – 1985).
Entre maio de 2012 e dezembro de 2014, a CNV dialogou intensamente com a sociedade, buscando documentos, colhendo depoimentos de mais de mil pessoas, realizando dezenas de audiências públicas em todo o território nacional, cooperando com comissões da verdade estaduais, municipais, universitárias, sindicais, seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e realizando diligências nos locais de repressão.
Integrada por sete personalidades de reconhecida idoneidade e conduta ética, identificadas com a defesa da democracia e da institucionalidade constitucional, a CNV contou com um competente conjunto de mais de uma centena de assessores e pesquisadores também designados pela Presidenta.
O trabalho da CNV concluiu que as práticas de detenção ilegal, tortura, morte, desaparecimento forçado e ocultação de cadáver, especialmente nos 21 anos de ditadura, foram o resultado de uma ação generalizada e sistemática do Estado, configurando crime contra a humanidade.
O Relatório
No primeiro volume do Relatório Final, a Comissão se ateve à descrição dos referidos fatos relativos às graves violações de direitos humanos como um tributo à memória e à verdade histórica, atendendo, desse modo, aos propósitos definidos pela Lei que a instituiu. Dividido em dois tomos, esse volume tornou-se o mais atualizado documento oficial do Estado brasileiro a detalhar as estruturas estatais mobilizadas para perpetrar sistematicamente as mais tirânicas condutas contra a dignidade humana.
Descrevem-se, ali, os métodos e práticas de violações e suas vítimas, alcançando, ainda, casos emblemáticos, como a repressão contra militares, trabalhadores, sindicalistas, camponeses e grupos políticos insurgentes. Este volume ainda contém, além dos locais associados às práticas dos referidos crimes, como unidades militares e policiais e demais estruturas clandestinas, uma novidade em relação à documentação produzida por outros órgãos: a sistematização da cadeia de comandos, onde se nomeiam 377 responsáveis. Desde os autores diretos (algozes) e os responsáveis pela gestão de estruturas e condução de procedimentos, até aqueles cuja responsabilidade político-institucional permitiu a institucionalização da doutrina e prática desses atos ilícitos. Se as Forças Armadas protagonizaram as condutas, as cadeias de comando partiram dos gabinetes dos presidentes e ministros militares, como está fartamente demonstrado no relatório.
O segundo volume contém textos temáticos de responsabilidade individual de alguns dos conselheiros indicados. Trata-se de um conjunto de narrativas relativas à violação dos direitos humanos que tiveram como alvo diferentes segmentos da sociedade, grupos ou movimentos sociais. A resistência de muitos brasileiros, em seus ofícios e atividades quotidianas foi, também, objeto de um estudo analítico. Por fim, integra esse volume um texto sobre a participação de civis no regime ditatorial.
O terceiro volume contempla a história de vida e as circunstâncias da morte de 434 mortos e desaparecidos políticos, identificados pela Comissão. Tais categorias – morte e desaparecimento – foram consideradas em acordo com o Direito Internacional dos Direitos Humanos. Sempre que possível, foram determinados em cada caso, estruturas, locais, instituições, condutas e autorias. Como reconhecem os autores, a lista não é definitiva, pois pesquisas devem prosseguir. Notadamente no que se refere à repressão contra camponeses e indígenas. É preciso lembrar que, nesta parte, o Relatório se beneficiou dos esforços de vítimas, familiares e amigos dos mortos e desaparecidos, bem como dos organismos que precederam a CNV e já haviam conduzido o Estado brasileiro a assumir a responsabilidade pela referidas violações, como a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), a Comissão da Anistia do Ministério da Justiça e as comissões estaduais de reparação.
Esse último volume contém, ainda, uma censura explícita às Forças Armadas, acusadas de não darem acesso aos acervos dos Centros de Informações do Exército, Marinha e Aeronáutica, produzidos durante a ditadura, e de não prestarem as informações requeridas, impedindo que fossem reconhecidas as circunstâncias e autores das graves violações. Aos militares são atribuídas as lacunas dessa história de execuções, tortura e ocultação de cadáveres de opositores políticos durante o regime de exceção.
Antecedentes
A criação da CNV foi uma recomendação da 11ª Conferência Nacional dos Direitos Humanos, reunida em dezembro de 2009 na capital federal, com o objetivo de dar prosseguimento à deliberação constitucional acima referida. Com essa iniciativa o Brasil se filiava às ações de dezenas de países que criaram suas comissões da verdade para lidar com o legado de práticas de aniquilamento físico e moral de opositores políticos.
Essa medida foi antecedida, ainda no período ditatorial, por vários esforços coletivos, como o abaixo-assinado de 35 presos políticos, dirigido ao Presidente do Conselho Federal da OAB, em 1975, relatando as irregularidades sofridas pelos presos políticos e os métodos e instrumentos de tortura. Nesse mesmo ano, foi criado o Movimento Feminino Pela Anistia (MFPA), liderado por Therezinha Zerbini. Em 1978, foi constituído o Comitê Brasileiro pela Anistia, reivindicando uma anistia ampla, geral e irrestrita.
Nesse movimento de lutas pelas liberdades democráticas o regime, acuado, apresenta um projeto de auto-reforma, visando uma abertura lenta, gradual e segura. Mantendo as rédeas do processo, o governo militar consegue aprovar, em agosto de 1979, no Congresso Nacional a Lei da Anistia, derrotando as emendas e o substitutivo apresentados pelo único partido de oposição, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB).
A anistia permitiu a liberdade de centenas de brasileiros e o retorno ao país dos exilados políticos. A Lei excluía, no entanto, os condenados pela prática de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal. Desse modo, muitos dos que foram postos em liberdade, não foram anistiados. Outra extravagância da Lei foi a interpretação de que os crimes conexos aos crimes políticos atingiam todos os agentes públicos ligados às condutas repressoras. Anistiava-se, assim, sem processo e antecipadamente, os responsáveis diretos e indiretos pelas barbáries cometidas contra as garantias elementares da vida civil.
Com a redemocratização, ganhou destaque o projeto “Brasil Nunca Mais”. Sob a liderança do Cardeal d. Paulo Evaristo Arns e patrocínio do Conselho Mundial de Igrejas, esta foi a maior iniciativa da sociedade brasileira na denúncia de graves violações de direitos humanos praticadas sob o regime militar. Essa extensa documentação foi constituída a partir de um ardil liderado pelos advogados de presos políticos que conseguiram tirar cópias dos autos dos processos criminais da Justiça Militar, solicitados para a elaboração da petição de anistia de seus clientes. A primeira sistematização de informações sobre práticas de tortura no país teve como base os depoimentos de presos políticos quando interrogados nos tribunais militares.
Em 1995, uma equipe formada pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos e Instituto de Estudos da Violência do Estado e das sessões pernambucana e fluminense do Grupo Tortura Nunca Mais, publicou o “Dossiê dos Mortos e Desaparecidos Políticos”, apurando 339 casos de assassinatos e desaparecimentos decorrentes da perseguição política.
A primeira iniciativa oficial relevante no sentido de resgatar e preservar a memória e permitir a elucidação de violações contras os direitos humanos ocorridas durante a ditadura civil-militar, foi a sanção da Lei 9.140/1995. Esta foi a pedra angular de todo o reconhecimento da responsabilidade do Estado brasileiro sobre os crimes de lesa-humanidade perpetrados pela ditadura. Ela também criou a CEMDP. Esta comissão foi responsável pela publicação, em 2007, do relatório “Direito à Memória e à Verdade”, narrando centenas de casos de morte e desaparecimento de opositores da ditadura. Este documento rejeita a denominação “terrorista” aos que morreram lutando como opositores políticos de um regime que se instituiu rasgando a constituição democrática de 1946.
Cabe destacar, por último, o papel da Comissão de Anistia, criada em 2002, com a finalidade de definir os direitos dos anistiados, na produção de uma memória sobre as graves violações aos direitos humanos que também serviu de subsidio ao trabalho da CVN.
Repercussões
O Relatório Final não agradou a todos. Não poderia. O choro da Presidenta Dilma – ela própria presa e torturada nos órgãos de repressão – ao receber o Relatório expressa claramente que as feridas estão abertas. O desejo de que este documento se transforme num marco civilizador de nossa democracia e em um instrumento apaziguador de nossas lides políticas – e das tentações autoritárias ainda vigentes em nosso país – depende do envolvimento de todos aqueles que percebem serem os direitos humanos o fundamento da democracia e da cidadania que estamos construindo como nação.

Para as famílias dos desaparecidos que não tiveram elucidado o destino de seus parentes – 208 – a busca e o desespero continuam. Ainda no campo dos militantes pelos direitos humanos, levantam-se vozes que apontam para outras insuficiências: a não recomendação explícita para o Congresso revisar a Lei da Anistia de modo a alcançar os responsáveis, como cobram os organismos internacionais como a Corte Interamericana dos Direitos Humanos, ligada à OEA e a ONU; o caráter “superficial” do documento, conforme Cecília Coimbra do Grupo Tortura Nunca Mais, para quem “falar de violações aos direitos humanos é balela”. Para ela o que houve foi tortura. Wadih Damous, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), aponta falha na divulgação do Relatório que “deveria ser distribuído nas escolas e universidades”.
A reação dos setores militares – o silêncio do oficialato foi a resposta à responsabilização por parte da Forças armadas quanto aos crimes documentados no Relatório – apareceu na forma de uma lista onde se divulgam os nomes de “126 brasileiros que perderam suas vidas pelo irracionalismo do terror nas décadas de 1960 e 1970”. Publicado pelos Clubes Naval, Militar e de Aeronáutica, o documento assevera que estas vítimas foram “absurdamente desprezadas pela Comissão Nacional da Verdade”. Uma nota do Supremo Tribunal Militar, onde se afirma que a instituição garantiu direitos na ditadura, procurou isentar o órgão de qualquer responsabilidade pelo arbítrio. Ainda sobre a conclusão da CNV de que a justiça militar teve papel fundamental na execução das perseguições e punições política, a nota apenas alega que no Relatório “há equívocos e inverdades”.
A discussão sobre a revisão da Lei da Anistia está no centro de toda a controvérsia e continuará agindo como um fermento do debate.
A justiça como dever de memória
Vivemos um período em que o tema dos direitos humanos expandiu-se para além dos círculos pensantes e militantes, tornando-se pedra de toque no quotidiano de nossa sociedade. Direitos da pessoa humana, não apenas na sua acepção mais clássica de defesa das garantias individuais contra o arbítrio dos poderes, porém atualizados como a âncora de toda política voltada à inclusão de parcelas crescentes da população – os cidadãos de segunda e terceira classe que habitam a periferia dos grandes centros, as classes médias modestas e os trabalhadores rurais e urbanos – a permitir o acesso aos direitos civis, sociais, culturais, de gênero, políticos, são a base da justiça social.
O desejável é que leis e justiça caminhem no mesmo sentido e é nisso o que cada um, enquanto cidadão tem a obrigação moral de se empenhar.
Aos que estão comprometidos com essa pauta, a justiça, nesse caso, é o reconhecimento da responsabilidade do Estado na ofensa a direitos civis básicos de parcela de seus cidadãos. Revelar a “verdadeira” história, ainda que restrita à descrição factual dos casos apurados de seqüestros, prisões, torturas, assassinatos e desaparecimentos dos que se opuseram à ditadura, é um dever de memória para todos os comprometidos com a construção da cidadania no Brasil. Como imperativo coletivo, estas ações devem envolver não só as instituições formais do Estado, como também entidades da sociedade civil.
No Memorial dos mártires, construído em Paris, por De Gaulle, e destinado à memória dos mais de duzentos mil franceses que conheceram o sofrimento e a morte nos campos de concentração nazista é possível ler em um mural a inscrição “Pardonne, n’oublie pas”.
Se a reconciliação nacional é um imperativo da democracia que estamos a construir, perdoemos, pois, mas não esqueçamos.