Hildeberto Vieira Martins – Universidade Federal Fluminense
Nos últimos meses assistimos através de vários veículos de notícia inúmeros atos racistas dirigidos contra a população negra, infelizmente um triste quadro social ainda bastante comum e recorrente em várias partes do mundo. A violência institucionalizada, fortemente motivada pelo racismo estrutural presente em diferentes níveis e com diferentes resultados em praticamente todas as sociedades contemporâneas. Essa violência, de cunho racial, pode ser retratada pelas mortes de João Pedro Mattos Pinto, de 14 anos, em São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro (BRA), de Miguel Otávio, de 5 anos, que caiu do 9º andar de um prédio em Recife (BRA), quando estava sob cuidados da patroa de sua mãe, ou de George Floyd, de 46 anos, detido e morto pela polícia em Minneapolis (EUA). Esses dois casos tiveram enorme repercussão social, evidenciando a existência e a manutenção do racismo nos dias atuais, mas que não podemos ignorar que as suas raízes são históricas e estão ancoradas no processo de escravização da população africana e no forçado processo diaspórico ao qual ela foi submetida no período de colonização das Américas. Contudo, esses atos racistas tiveram como resposta a eclosão de manifestações antirracistas em várias partes do mundo, inclusive no Brasil. A grande maioria dessas manifestações contou com uma significativa participação de vários setores da sociedade, o que parece refletir que a forma como o racismo é pensado pode mudar, deixando de ser visto somente como um “problema de negros” e passando a ser reconhecido como um problema estrutural, ou seja, como implicando a todos nós. Essa nova maneira de lidar com a questão racial é que permitiu a ampliação do debate antirracista em estratégias capazes de mudar a realidade social da população negra, a mais atingida pelos efeitos do racismo estrutural em nossa sociedade.
Se os fatos retratados acima dizem respeito a acontecimentos recentes, não podemos deixar de afirmar que o racismo é um processo histórico de longa duração, que remete aos debates científicos desenvolvidos entre os séculos XVIII e XIX. As discussões sobre as “origens raciais” dos seres humanos e as causas de sua diversidade serão cada vez mais importantes para definir as diferenças físicas, culturais e psicológicas da variedade humana. Se tais explicações baseavam-se nas interpretações da Sagrada Escritura, a partir do século XVIII, a noção de “tipos raciais” começa a ganhar repercussão mundial em decorrência das ideias de Carl Nilsson Linnaeus (1707-1778) e o seu “Sistema Natural”, publicado em 1735. Esse modelo foi posteriormente reinterpretado por Georges Cuvier (1769-1832), e reafirmava a preocupação com a criação de um sistema classificatório eficaz da espécie humana. Os estudos científicos desses pensadores consolidarão a ideia da importância da elaboração e busca de um padrão geral de medidas que seja “científico” e, portanto, sirva de parâmetro para a manutenção e hierarquização da diversidade humana a partir da uma “falsa medida” (Gould, 1999) universal do homem. Essas ideias pré-darwinistas sofrerão uma nova mudança a partir da teoria da evolução de Charles Darwin (1809-1882) e de sua contestação da natureza permanente dos seres vivos e do papel da seleção natural para a produção da variabilidade das espécies. Contudo, mesmo a teoria darwinista não eliminará a noção de “tipos raciais”, só irá complexificar o debate com o surgimento da noção de darwinismo social. Esse movimento inicialmente teve a participação de pensadores como Ludwig Gumplowicz (1838-1909) e Herbert Spencer (1820-1903), mas que nunca se tornou uma escola ou campo homogêneo. A principal ideia aglutinadora dos assim chamados darwinistas sociais sugeriria que a evolução social derivava da seleção natural e sexual controlada eficazmente.
O racismo científico produzirá seus efeitos também no Brasil, muito em decorrência do projeto “civilizatório” capitaneado por nossos intelectuais e por parte da elite brasileira, e por isso passaremos a discutir como tais ideias foram utilizadas em nosso país e quais foram os seus efeitos no campo dos saberes psicológicos.
O Brasil foi um dos países submetidos ao modo de funcionamento do sistema colonialista iniciado no século XVI. Em nosso país, esse modelo caracterizou-se fundamentalmente por um padrão de exploração dos grupos étnicos autóctones e negros por mais de 300 anos, assunto que já foi discutido e estudado por vários pesquisadores (Martins, 2019; Chalhoub, 2009; Mattos, 1998). Os agentes sociais submetidos à lógica racialista eram frequentemente definidos por características raciais e fenotípicos que orientavam seu lugar social. Essa tipologia racial determinava quem era “branco” ou “negro” e como as relações de exploração, conflito e subalternidade vigorariam em nossa sociedade. Tais características “raciais” seguiam a lógica perpetrada pelo racismo científico e que, aqui, foram bastante difundidas pelo campo médico-psicológico. Um exemplo dessa difusão pode ser visto pela discussão e pelos trabalhos realizados pela “Escola Baiana de Antropologia” ou “Escola Nina Rodrigues” (Corrêa, 1998, 1982; Martins, 2009). Os estudos dessa “Escola” tomavam como principal problema uma maior compreensão do papel da população negra (africana ou afro-brasileira) e os seus efeitos para a constituição da sociedade brasileira a partir do conceito-chave de “degeneração da raça”. Nomes como os de Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906), Arthur Ramos (1903-1949) e Afrânio Peixoto (1876-1947) voltariam o seu olhar ao longo do final do século XIX e início do século XX para a questão racial e a sua importância para o futuro do Brasil. Esses autores contribuíram significativamente para o desenvolvimento de determinadas áreas de saber (da psiquiatria, da medicina legal e da antropologia brasileiras) e de certas temáticas ligadas a elas (do racismo científico ou do estudo das manifestações culturais africanas). Constatamos que, a partir da década de 1930 e seguintes, as ideias raciais no Brasil foram influenciadas pela difusão do modelo sociocultural de cunho freyriano (e posteriormente por sua revisão crítica). O modelo do determinismo racial passa a ser questionado e criticado e a intelectualidade brasileira busca pensar outra alternativa para o Brasil e seus impasses. As décadas iniciais do século XX foram marcadas pelo projeto político-social de um Brasil moderno, projeto construído na confluência de várias disputas e embates e que culminariam naquilo que ficou conhecido como a “Revolução de 1930”, e que culminaria com a ascensão de uma nova ordem republicana e de um novo modelo de Brasil. Os estudos culturalistas desse período tinham como propósito sinalizar para o papel e a importância da nossa mistura racial e seu impacto em nossa identidade nacional, mais positiva porque mais miscigenada. Essa ideia teria como resultado a difusão do mito da “democracia racial” brasileira. As décadas de 1940 e 1950 serão marcadas pelos estudos sobre relações raciais patrocinados pelo ciclo de pesquisas comparativas que foram organizados pela UNESCO em diferentes regiões brasileiras (Bahia, Pernambuco, Amazonas, Rio de Janeiro e São Paulo). O objetivo era constatar a existência de experiências bem sucedidas de cooperação racial e a sua possível replicação em outras partes do mundo. O projeto UNESCO marcou a ruptura de uma visão utópica sobre as relações raciais no Brasil e colocou em cheque a tão propalada ideia de democracia racial brasileira. E não podemos deixar de assinalar que esse projeto teve a participação de três profissionais ligados ao campo psicológico: Virgínia Leone Bicudo (1915-2003), Aniela Meyer Ginsberg (1902-1986) e Otto Klineberg (1899-1992).
Uma nova inflexão sobre a temática racial ganhou corpo em finais da década de 1970, pois a raça seria agora retomada como um componente importante para a perpetuação de determinadas estruturas sociais, ou seja, tanto o sistema de exploração classista quanto a opressão e violência voltadas para alguns grupos raciais se articularam para a manutenção do funcionamento social que mantém a população negra no estrato mais subalternizado da sociedade brasileira. O resultado desse processo acarreta uma maior desigualdade no acesso de bens materiais e da constituição simbólica negativa da população negra. Isso já havia sido constatado pelos movimentos sociais negros desde a década de 1950, como pode ser percebido pelas lutas e denúncias realizadas pelo Teatro Experimental do Negro (TEN). As pressões do movimento negro ao longo das últimas décadas também foram fundamentais para a mudança de olhar sobre as relações raciais. As produções científicas da psicologia e principalmente da psicologia social acompanhariam esse debate e começam a pensar o fenômeno do racismo do ponto de vista psicossocial e não psicologizante. Pode-se dizer que é a partir desse momento que é possível vislumbrar mais nitidamente uma postura antirracista no campo da psicologia brasileira, mesmo que possamos constatar alguns poucos trabalhos críticos já na década de 1950. Os estudos mais recentes trabalham os feitos da discriminação racial como produzidas pelo funcionamento de relações de poder entre diferentes grupos, evidenciando a força dessa categoria como fator de diferenciação e de hierarquização social. Esse debate será acrescido da produção de estudos sobre a branquitude e o branqueamento e o lugar do “branco” na reprodução do racismo.
Podemos resumir a discussão levantada nesse texto afirmando que as teorias raciais prosperaram ao longo desse processo histórico, indo da formulação de uma hierarquia classificatória em Linnaeus até as infames teorias arianas difundidas pelo nazi-fascismo da Segunda Guerra Mundial, período em que a concepção de raça sofrerá nova revisão e passa a ser vista como um constructo social e, portanto, não mais será reconhecida como tendo uma base biológica imutável. Contudo, isso não significa que a ideia de raça deixou de servir de parâmetro para a promoção de violência de desigualdade social dirigida a determinados grupos sociais definidos e percebidos por uma lógica racializante.
Os recentes casos de racismo mencionados acima acontecem ainda em um momento em que presenciamos, estarrecidos, nos últimos meses, o aumento constante de mortes no Brasil em razão da aceleração de casos da epidemia do covid-19 e tratamento negligente e irresponsável do Estado Brasileiro. E os debates recentes têm apontado que a população negra é a mais afetada por essa pandemia.
Nesse sentido, devemos nos manifestar contra todas as formas de violência e de abuso de direitos engendrados pelo ódio racial. A psicologia deve se opor a todas as práticas discriminatórias e violadoras de direitos sociais e políticos, já que toda vida negra importa. A psicologia, em todo o mundo, deve ter o compromisso ético, político e social com o reconhecimento das inúmeras formas de singularidade, aí incluídas as manifestações das subjetividades negras. Reconhecer esse compromisso referenda o papel da psicologia como ciência e profissão e a sua busca continuada pela manutenção dos direitos sociais e políticos de todos os sujeitos, em especial, as minorias que histórica, econômica, política e culturalmente foram e continuam sendo excluídas e silenciadas pela perpetuação sistêmica de práticas discriminatórias em nossa sociedade (racistas, sexistas, classista etc.). Que reconheçamos que os atos e discursos racistas que promovem a violência racial institucionalizada possuem impactos na saúde física e mental da população negra e que precisamos combatê-las nos mais diversos contextos de nossa sociedade.
Para finalizar, é importante afirmar e apoiar a causa #vidasnegrasimportam
Referências
Chalhoub, S. (2009). Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras.
Corrêa, M. (1998). As ilusões da liberdade: a Escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil. Bragança Paulista, BP: EDUSF.
Corrêa, M. (1982). Antropologia & medicina legal: variações em torno de um mito. In Fry, P., et al. Caminhos cruzados: linguagem, antropologia e ciências naturais. São Paulo: Brasiliense.
Mattos, H. B. (1998). Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista, Brasil – Século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
Martins, Hildeberto Vieira. (2019). Psicologia, colonialismo e ideias raciais: uma breve análise. Revista Psicologia Política, 19(44), 50-64. Recuperado em 30 de junho de 2020, de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1519-549X2019000100007&lng=pt&tlng=pt.
Martins, H. V. (2009). As ilusões da cor: sobre raça e assujeitamento no Brasil. Tese de Doutorado em Psicologia Social, Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.