No último final de semana faleceu em Batatais (SP) o Bispo Dom Pedro Casaldáliga (1928-2020), um importante defensor dos direitos humanos, desde os tempos da ditadura militar brasileira, especialmente dos povos indígenas e das populações ribeirinhas.
Nascido em Balsareny, uma província de Barcelona, ingressou na vida eclesiástica aos 15 anos e mudou-se da Espanha para o Brasil aos 40 anos. Em território brasileiro, fundou uma missão Clarentiana (de Sta. Clara) no Estado do Mato Grosso, na cidade de São Félix do Araguaia, local marcado pela marginalização social a qual Casaldáliga se opôs veemente.
Após sua nomeação a administrador apostólico da prelazia de São Félix do Araguaia, escreveu o primeiro texto-denúncia que o tornou conhecido no Brasil e no exterior: “Escravidão e Feudalismo no norte de Mato Grosso”, o qual denunciava a situação da região às autoridades da igreja e do governo. Em 1971, recebeu a nomeação de bispo prelado de São Félix do Araguaia pelo Papa Paulo VI.
Devido ao seu engajamento com as questões sociais, Casaldáliga foi vítima de ameaças de morte por parte dos latifundiários da região devido às suas denúncias sobre as injustiças cometidas com os povos indígenas. Durante a ditadura, foi alvo de processos que o ameaçavam expulsar do Brasil, chegando a ser acusado de agente comunista.
Sua vida, entretanto, não se resume nas lutas contra a injustiça social. Casaldáliga era escritor e poeta, com mais de 20 livros publicados, alguns apenas em espanhol, onde é reconhecido pela sua liderança católica. Interessado pelas áreas de antropologia, sociologia e ecologia, também era adapto a teologia da libertação, adotando para si o lema: “Nada possuir, nada carregar, nada pedir, nada calar e, sobretudo, nada matar“.

Devido a sua atuação e importância no cenário brasileiro, este blog resgata seu discurso para os formandos de Psicologia da Universidade Gama Filho do Rio de Janeiro, em 1981. Suas palavras são de grande inspiração e importância que reverberam até os dias de hoje.
PRELAZIA DE SÃO FÉLIX DO ARAGUAIA, MATO GROSSO – BRASIL
São Félix do Araguaia, MT, 12/2/1981
Aos amigos e companheiros Formandos de Psicologia da Universidade Gama Filho de Rio de Janeiro:
Na impossibilidade de enviar para vocês um discurso e na impossibilidade de estar aí, com vocês – porque sua colação de grau coincide com a Assembléia Nacional da CNBB -, escrevo esta carta. Com liberdade familiar. Vocês me elegendo como “patrono”, como “padrinho”, deram-me esse direito.
Elegendo-me, vocês pretendiam prestar “uma homenagem á Igreja de nosso país que atualmente paga um alto preço por sua liberdade de ser.V. Igreja de Jesus Cristo; por ser o que deve ser, apenas. Honestamente a Igreja de Jesus não pode deixar de pagar este preço de encarnação comprometida. De todo jeito, obrigado. Vocês, com isso, nos confortam e nos comprometem a mais.
Agradeço ainda a lição de simplicidade que vocês deram a muitos com o seu convite, simples folha vestida de Terra. Seja ele como um pequeno sacramento da simplicidade com que vocês pretendem ingressar mais comprometidamente no “espaço social brasileiro” e latinoamericano.
Agora é que vocês vão se formar, na luta, com o Povo, frente ás tentações do Dinheiro, do Poder, do Prestígio. Frente á grande tentação do Mercado Profissional.
Também a Psique virou matéria de mercado, nesta mercantilista sociedade que o Capitalismo moderno exarcebou em requintes de desequilíbrios e necessidades.
Não esqueçam nunca que a Psicologia toca a alma humana, “mercadoria” outra, “matéria prima” nascida do próprio alento do Deus Vivo, transação feita a preço de sangue – do Sangue do Filho de Deus, do muito sangue dos muitos filhos dos Homens…
A maltratada alma humana destes tempos de neuroses e de psicoses, na desajustada sociedade do consumismo e da supertécnica; onde o importante é ter mais, ser mais-do-que-os-outros, mesmo á custa de deixar de ser identidade humana.
Não se vendam: nem nas Escolas do Sistema dominante, nem nas Empresas do Lucro capitalista nem nos Consultórios da Medicina prostituída.
Não acabem sendo funcionários bem pagos, psicólogos dos privilegiados do Mundo, aliados úteis da Exploração, talvez da Repressão.
Sejam trabalhadores da Ciência, junto aos trabalhadores da enxada ou do torno ou da panela. Construtores todos do Mundo Novo que precisamos, que os Pobres da Terra exigem angustiadamente.
Vocês, como psicólogos, têm uma específica missão, escandalosamente “espiritual”. O Homem não pode ser máquina. Devolvam ao Homem sua condição livre e luminosa. Reconciliem a Ciência dos gabinetes com a Sabedoria do Povo. Recuperem para si e para os irmãos aquela Psicologia popular, ainda “natural”, humana ainda, que se expressa em comunhão com a Natureza – sobretudo nos meios indígenas -, em sábia paz interior do dia a dia, em relacionamento familiar ou de vizinhança sem hermetismos e sem histerismos, na alegria simples dos festejos – sem as sofisticações dos reveillons cariocas, na capacidade de falar com Deus…
Descubram e assumam as atitudes básicas do HOMEM NOVO que todos sonhamos, que Deus programou, pelo qual deveríamos apostar, minuto a minuto, toda nossa existência, tentando sermos nós, em irradiação comunitária, Mulheres Novas, Homens Novos, novas Pessoas humanas.
A verdadeira revolução definitivamente transformadora da Socidade Humana é tanto “psicológica” como “socio-político-econômica”. Devemos transformar simultâneamente – sublinhem o advérbio, para evitar escapismos dualistas – tanto as pessoas quanto as estruturas. Um bom psicólogo seria assim, por definição, um militante.
Vocês estudaram privilegiadamente a Alma Humana, para agir a paritr dela – vocês sendo sempre humanos -, para agir em torno a ela – entre humanos e irmãos-, para agir sempre em favor dela – síntese vital da Pessoa Humana que, por sua vez, é a síntese consciente do Universo, sendo a imagem filial do próprio Deus Criador.
Hoje, aqui. Nesta hora do Brasil e da Pátria Grande comum, que é esta América Latina. sejam atuais, não tanto pelos novos livros que conheçam ou pelas novas técnicas que utilisem, quanto pelo diário engajamento com que se joguem na correntesa viva da História.
“Companheiríssimo”, vocês me chamaram. Sejamos.
Com esta afeição e nesta Esperança, sob a luz e o grito deste desafio, abraço a todos vocês, companheiro e irmão,
Pedro Casaldáliga Bispo de São Félix do Araguaia, MT