André Luís de Oliveira de Sant’Anna
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Em seu texto Além do Princípio do Prazer, Sigmund Freud afirma que a compulsão à repetição é produto da pulsão de morte, sendo um impulso à ação que faz oposição ao recordar (Pena, 2007). A história dos povos indígenas no Brasil é marcada por esquecidas repetições, que atuam a serviço de uma necropolítica que define quais os corpos podem ser descartados, enquanto velhos atores seguem no controle. A pandemia de COVID-19, segundo declarou a Organização Mundial de Saúde em janeiro de 2020 constituiu uma Emergência de Saúde Pública, atingindo um número recorde de contaminados no Brasil e deixando milhares de mortos. No entanto, os povos indígenas foram ainda mais atingidos, visto que tiveram que enfrentar simultaneamente além da pandemia de COVID-19, a invasão violenta de suas terras e uma sistemática omissão do governo.
Quando os portugueses chegaram à terra que viria a ser o Brasil em 1500, não encontraram uma terra desabitada, mas sim uma vasta população estimada em mais de 5 milhões de pessoas, formada por mais de 1000 etnias, enquanto a população portuguesa na época era calculada em 1.500.000 habitantes. Portanto, o acontecimento descrito nos livros de história como sendo o descobrimento do Brasil, poderia ser mais adequadamente classificado como uma invasão. Os mais diversos grupos étnicos que habitavam o novo continente foram abrigados em um único vocábulo: índios. Terminologia esta justificada à época pelo argumento de que os colonizadores pensavam ter chegado à Índia, país para onde, supostamente, dirigia-se a expedição que partiu do Rio Tejo em Lisboa com uma frota de treze navios, comandada por um fidalgo de pouco mais de trinta anos, Pedro Alvares Cabral. A população indígena, no período da conquista, era simploriamente classificada como: aliados ou inimigos.
O encontro com o homem branco promoveu a proliferação de inúmeras doenças contagiosas, gerando grande mortandade entre a população indígena. Deste modo, compreende-se que, seja pela intensificação das guerras intertribais ou pela exposição às doenças trazidas do velho mundo, a organização social dos povos indígenas foi cada vez mais fraturada como efeito colateral do processo de colonização. O investimento sobre os corpos indígenas, a partir de relações complexas, tinha como objetivo a utilização econômica, de modo que sua sujeição, através de inúmeras tecnologias de dominação, buscava torna-lo um corpo apto para o trabalho (Foucault, 1986).
A ação dos missionários jesuítas que visava promover a conversão dos índios à mensagem cristã, constituía um dos dispositivos de controle colocados em operação na Colônia que tinha como finalidade produzir um corpo indígena submisso a Cristo e ao Rei, despido de sua cultura e vestido como cristão, soldado e trabalhador, buscando operar uma ortopedia no comportamento dos indígenas estabelecida como meta de atuação da usina colonial que pretendia fabricar corpos submissos.
Ao longo da formação do Brasil, os povos indígenas tornaram-se alvos de diferentes disputas, visto que a cobiça dos colonizadores se deslocou do trabalho compulsório de indígenas para as suas terras, vindo um século depois se deslocar novamente do solo para o subsolo indígena. Com a emergência da República, outras novidades da política indigenista se colocaram em curso, como a criação do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) em 1910, ainda pautado em uma perspectiva assimilacionista, acreditando que os indígenas desapareceriam sendo integrados ao país.
O SPI tinha como objetivo prestar assistência a todos os índios do território nacional sendo responsável pela proteção e tutela dos índios entre os anos de 1910 e 1967. O Marechal Rondon (1865-1958) foi seu idealizador e primeiro Diretor. Nomeado como Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais, em 1914 as atribuições relativas a trabalhadores nacionais foram transferidas para outra repartição e o nome se restringiu a Serviço de Proteção aos Índios. A política indigenista adotada, nesse período, tinha como finalidade a civilização do índio, transformando-o em um trabalhador nacional. Para atingir esse propósito, foram utilizadas estratégias educacionais desenvolvidas nos postos indígenas (Sant’Anna, 2016).
Rose (2008) em seu texto A psicologia como uma ciência social, vai indicar que a formação da psicologia moderna não se dá nos porões da academia ou dos laboratórios, mas aponta para os espaços que buscavam controlar o comportamento dos indivíduos e dos grupos, tais como: fábricas, prisões, exército e a sala de aula. Logo, se desejamos verificar a emergência da psicologia no Brasil é importante investigar os dispositivos de controle que foram aplicados nas populações originárias, tais como: postos indígenas, prisões, colônias e a militarização das aldeias.
A atuação do SPI ao longo dos anos esbarrou em uma série de desvios que foram trazidos a tona à partir do trabalho de uma Comissão de Inquérito que foi estabelecida em 1967, em meio a acusações de corrupção que culminaram com a extinção do SPI e criação da Fundação Nacional dos Índios (FUNAI), que adotou uma política indigenista que atendia ao interesse desenvolvimentista defendido pelos militares. O golpe de 1964, no Brasil, foi um grande negócio para o grande capital. Dreifuss (2006), em seu livro 1964, a conquista do Estado, diante da relação entre o “terror de Estado” e o “Big business”, indica que o termo que captura melhor a natureza daquele regime seria ditadura empresarial-militar. As Forças Armadas se fortaleceram com a cumplicidade de uma parte da elite civil e o apoio do empresariado, e com duas práticas que foram mantidas durante todo o regime: a tutela sobre a classe política e o controle policial (Fausto, 1995).
Dentre os diversos grupos que sofreram graves violações de seus direitos neste período faz-se necessário citar a população indígena. O resultado dessa política de Estado foi a morte de cerca de 8350 indígenas, conforme investigado pela Comissão Nacional da Verdade, em decorrência da ação direta ou da omissão de agentes governamentais.
No ano de 2012 o eixo indígena da Comissão Nacional da Verdade, tendo como membro responsável a psicanalista Maria Rita Kehl, identificou em suas buscas por documentos no Núcleo de Arquivo do Museu do Índio um conjunto de documentos conhecido como Relatório Figueiredo, assim chamado por conta do seu relator o procurador Jader Figueiredo, resultado das investigações da Comissão de Inquérito estabelecida em 1967. A Comissão apresentou no Relatório uma lista de crimes e dos respectivos indiciados, dentre os crimes praticados e apurados contra a pessoa e o patrimônio indígenas destacaram-se: assassinatos (individuais e coletivos), tortura, trabalho escravo, usurpação do trabalho dos índios, apropriação e desvio de recursos oriundos do patrimônio indígena, cárcere privado e introdução intencional de varíola e sarampo visando exterminar populações indígenas. Diversos jornais, como o Jornal do Brasil (que foi citado pelo The Washington Post), acusaram o governo brasileiro de consentir em uma política de genocídio da população indígena, exigindo imediata investigação pela Organização das Nações Unidas (Sant’Anna, 2016).
A política indigenista adotada no período visava favorecer os planos do governo na construção de estradas, hidrelétricas, expansão do agronegócio e da mineração. Quanto aos índios que estivessem no caminho da Transamazônica, a Funai, por meio da portaria nº 1/N de 25/1/1971, declarou que a assistência ao índio não visava e não podia obstruir o desenvolvimento nacional e nem os eixos de penetração para a integração da Amazônia.
Dentre as medidas tomadas pelo governo militar, no referido período, destaca-se a criação da Guarda Rural Indígena (GRIN), que se caracterizava pela militarização da questão indígena, visto que se tratava de uma milícia formada por indígenas que receberam treinamento da Polícia Militar de Minas Gerais para atuarem na disciplinarização de aldeias. Há de se ressaltar uma outra medida da época: a criação do Reformatório Agrícola Indígena Krenak, localizado na cidade de Resplendor, em Minas Gerais. Criado pela Funai, foi dirigido pela Polícia Militar desse estado. Nele, ficavam os índios encarcerados com comportamentos tidos como desviantes e os envolvidos em conflitos de terra. Não só encarceramento, também a disciplinarização fazia parte dos objetivos do Reformatório. Na prática, o Reformatório Krenak funcionava como um espaço disciplinar, em que os indígenas eram torturados, submetidos a trabalhos forçados e alienados de sua liberdade.

No ano de 1973, por ocasião do vigésimo quinto aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, os Bispos da região Extremo Oeste produziram um documento intitulado “Y-Juca-Pirama: O Índio, Aquele que Deve Morrer”, em que denunciavam a situação dos povos indígenas no Brasil no contexto das grandes obras do governo empresarial-militar. Entretanto, a referida denúncia segue sendo atual, de modo que a celebração pelo Dia Internacional dos Povos Indígenas no dia 9 de agosto, data comemorativa criada pela Organização das Nações Unidas (ONU), é um grito de resistência feitos pelos povos indígenas que diante da pulsão de morte colonial, insiste em lembrar para que não se esqueça, para que nunca mais se repita.
Referências:
Foucault, M. (1986). Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes.
Pena, B. (2007). As vicissitudes da repetição. Reverso, 29 (54).
Rose, N. (agosto de 2008). Psicologia como uma ciência social. Psicologia & Sociedade, pp. 155-164.
Sant’Anna, A. L. (Maio de 2016). Dissertação. Práticas disciplinares implicadas no Relatório Figueiredo: perspectivas psicológicas no controle étnico-social de índios durante a ditadura militar. Rio de Janeiro, RJ, Brasill: CEFET/RJ.
Sant’Anna, A. L., Castro, A. d., & Vilela, A. M. (2018). Ditadura militar e práticas disciplinares no controle de índios: perspectivas psicossociais no Relatório Figueiredo. Psicologia & Sociedade. https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S0102-71822018000100240&lng=pt&nrm=iso
Dreifuss, R. (2006). 1964, a conquista do Estado. Petrópolis: Vozes.